10 anos da Revolta da Catraca

Foto: Jorge Minela

por Carol Cruz

Este é um texto bem pessoal, baseado quase que completamente na memória afetiva, por isso peço antecipadamente desculpas por prováveis imprecisões. Foi também escrito às pressas, a guisa de homenagem e rememoração do aniversário de 10 anos da Revolta da Catraca de Florianópolis, SC. Não vou me aprofundar sobre o que foi este evento que marcou de modo ímpar a vida na cidade e colocou definitivamente a reivindicação de um transporte coletivo público e de qualidade na pauta política de Florianópolis, sobre tudo na de seus movimentos sociais1. Aqui eu escrevo um pouco sobre a sua importância para a formação de um grupo específico, o MPL- Floripa – uma das origens do Movimento do Passe Livre, que se encontra hoje em diversas cidades do país e que ano passado foi fundamental para recolocar o tema do transporte coletivo no debate político nacional.

8 de julho na verdade marca a vitória deste movimento contra o aumento das tarifas que começou no dia 28 de junho de 2004. No dia 8 foi anunciada a revogação do aumento, após a recomendação do Ministério Público do Rio Grande do Sul diante do “caos social” que havia se instalado na cidade. Neste dia o poder público decretou ponto facultativo e o centro da cidade foi tomado por uma grande festa, com as bandas locais tocando, desconhecidos se abraçando e a esquerda, que há tempos não conquistava tamanha vitória, confraternizando.

Durante dez dias de insurreição popular nós vivemos experiências políticas que infelizmente não foram registradas e por isso às vezes temo que esqueçamos o que aprendemos com elas. Assembleias de rua, reuniões do Fórum do Transporte tão cheias que precisavam ser transferidas das pequenas salas de sindicatos para o Salão Paroquial da Catedral, rádio livre instalada no centro transmitindo ao vivo informações das manifestações, o CMI online e impresso como referência de meio de informação da cidade, comitê de pais e mães fazendo sopa para os manifestantes, atos que pareciam surgir espontaneamente em diversas regiões da cidade…

Mas não foi por acaso que esse atos apareceram com mais vigor em locais aonde já existia uma certa organização de resistência política. Foram militantes mais experientes que fecharam o Terminal de Integração do Rio Tavares (TIRIO). Professores universitários, sindicalistas e integrantes da associação de bairro já envolvidos na luta por um plano diretor mais democrático e justo. Sobre este ato em particular ainda, descobri há alguns anos algo curioso que corrobora com essa tese; durante uma oficina sobre tarifa zero realizada numa escola no Ribeirão da Ilha, um aluno relatou ter participado do fechamento do TIRIO ainda criança, levado pelos pais e tios adeptos da teologia da libertação.

As manifestações que aconteciam durante o dia no bairro Trindade e no centro da cidade eram maioritariamente formadas por estudantes secundaristas já engajados na luta por passe livre estudantil que era travada na cidade desde dos anos 2000. Entre os alunos e alunas de escolas como Colégio de Aplicação, Simão Hess, Autonomia, Centro Federal de Educação Tecnológica (o ex CEFET e atual Instituto Federal de Santa Catarina), Lauro Müller entre outras, haviam integrantes importantes da Campanha pelo Passe Livre, então tocada pela Juventude e Revolução Independente (dissidência da da JRI da Corrente o Trabalho do PT) e que deu origem ao coletivo do Movimento Passe Livre Floripa.

Como já escreveu um companheiro, não foi um raio em céu azul. E por isso preocupa quando ouvimos a história ser contada dando-se tanta ênfase à espontaneidade, como se aí residisse a a garantia do estatuto de autonomia e radicalidade da luta, na pureza da “espontaneidade popular”. E sim, o Movimento Passe Livre já gostou bastante de contar a história deste modo. Há quem ainda o faça. Mas ano passado ela voltou para nos assombrar numa brutal recusa à organizações políticas de esquerda e sob a forma de agressão a camaradas de partidos de esquerda, do movimento negro e até àqueles que simplesmente saíram vestindo vermelho durante as manifestações.

Em 2004 era incipiente a nossa crítica às tradicionais organizações de esquerda, ao PT que recém chegava ao poder, aos movimentos sociais que o apoiavam, aos partidos que tentavam sim aparelhar as manifestações. Fez parte da nossa formação diferenciarmos-nos desta esquerda, e isso se expressa na nossa carta de princípios na qual nos reivindicamos autônomos, apartidários, horizontais e independentes. Muito embora o MPL-Floripa nunca tenha se recusado a dialogar com partidos e, diferente de outros MPLs, sempre teve em seu coletivo militantes filiados a partidos de esquerda, durante a Revolta da Catraca cantamos palavras de ordem para que baixassem suas bandeiras, quando não quebramos algumas. De modo que não podemos nos fazer de desentendidos em relação as confusões violentas que aconteceram nas manifestações de junho, nem deixar de reconhecer a limitação dessa crítica que, enquanto discussão coletiva, tanto local quanto nacional, pouco avançou.

É claro que aprendemos muitos com a Revolta da Catraca. Ela evidenciou a centralidade do transporte coletivo para cidade. A partir dela ficou mais claro a força mobilizadora da pauta do transporte público para além de uma reivindicação estudantil. Acredito que a partir dali, ainda que tateando, vislumbramos a construção de uma luta feita na rua, através de manifestações e ações direta, e, talvez o mais importante, com uma pauta concreta, que afeta a vida, o cotidiano, os corpos das pessoas. Acho que naquele momento já se abriam os caminhos para a luta pela tarifa zero, bandeira que conhecemos e abraçamos alguns anos depois.

A falta de mobilidade nas cidades, para onde se deslocam cada vez mais pessoas, e a crise do modelo de transporte coletivo cada vez mais caro e ineficiente, davam os primeiros sinais de atingir um limite. A intuição que nos fez apostar no poder de mobilização da luta por transporte, assim como na construção de um movimento nacional, foi se materializando, e vimos nesses dez anos revoltas contra o aumento da tarifa eclodirem nas principais cidades do país. As importantes vitórias que resultaram das Jornadas de Junho de 2013 deram ao Movimento Passe Livre certo destaque, o que finalmente colocou a Tarifa Zero no debate público como proposta séria e viável, o que com certeza foi para nós a maior vitória.

No entanto, ao ensaiar uma espécie de balanço dos dez anos do MPL não consigo superar um certo pesar e pensar que enquanto organização política não avançamos tanto quanto nossa bandeira. Sempre me vem a cabeça um texto do Felipe Corrêa, “Balanço crítico acerca da Ação Global dos Povos (AGP) no Brasil”1, no qual ele esboça uma caracterização e aponta as limitações do que ele chama de “Cultura da AGP”. Acredito que herdamos muito do que ele aponta ali.

Embora tenhamos construído uma proposta de luta bastante concreta, ainda estamos presos ao mito das decisões por consenso, da horizontalidade, autonomia, apartidarismo (que volta e meia descamba para o anti-partidarismo).

Embora tenhamos entre nós militantes altamente qualificados, pesquisadores, com debate teórico profundo sobre mobilidade, direito à cidade e inclusive sobre o próprio movimento, isso não é apropriado pelo MPL que acaba associando o debate teórico às práticas autoritárias da esquerda tradicional.

Embora muitos dos seus militantes sejam hoje jovens adultos e que amadureceram dentro do MPL, ainda somos um movimento de jovens prepotentes e arrogantes, que ativamente ignora a história da esquerda no país e na América Latina e até sua própria recente história. Olhamos com desconfiança movimentos sociais clássicos como MST, e não reconhecemos que somos apenas uma organização política que ainda não alcançou o status de movimento que pretendíamos ser quando o colocamos no nome.

Eu sei que talvez essas críticas sejam muito duras e foram colocadas de uma maneira um pouco simplista. Mas vivemos tempos tão interessantes, de tanta transformação, que precisamos ser duros com nós mesmos para agir de modo que o mundo mude mais para como gostaríamos que mudasse, do que para como ele nos empurra avassaladoramente. Por isso nada melhor do que buscar força, inspiração e reflexão em uma vitória, em um momento tão forte e que marcou definitivamente nossa trajetória como a Revolta da Catraca de 2004.

Que venham mais revoltas por uma vida sem catracas!

 1. Sobre isso recomendo os livros “Guerra da Tarifa” 1 e 2 de Leo Vinícius, e este texto meu e do Leonardo Alves escrito para o evento 5 anos das Revoltas da Catraca, construir a memória da resistência em Florianópolis”, no qual tentamos reunir alguns dos acontecimentos que marcaram a Revolta (http://revoltadacatraca.wordpress.com/about/).

 

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